A cada 4 horas é registrado um assassinato de criança ou adolescente no Brasil. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 2.299 vítimas de morte violenta em 2023 de pessoas entre 0 e 17 anos. No Espírito Santo, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública (Sesp), foram registrados 4.502 boletins de ocorrência de crimes diversos contra crianças e adolescentes no ano passado.
O principal agressor tem um rosto familiar, situando-se no contexto doméstico da criança ou adolescente. Diante desse cenário, cabe ao Estado instituir mecanismos robustos de vigilância ativa, visando não apenas monitorar, mas também responder prontamente a sinais indiretos de abuso ou negligência. Ações de prevenção são fundamentais para mudar essa realidade.
Com o objetivo conhecer as ações e políticas públicas desenvolvidas pelos entes estaduais do Espírito Santo que fazem parte do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) na prevenção e no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, com enfoque especial para ações na primeira infância e para a articulação intersetorial dos entes, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES) realizou fiscalização na modalidade levantamento.
O trabalho concluiu que há um alto risco de revitimização de crianças e adolescentes no Espírito Santo, reforçando a urgência de ações estruturantes para fortalecer a rede de proteção e garantir um atendimento integrado e qualificado que assegure a proteção e o bem-estar de crianças e adolescentes em situação de violência.
Metodologia
O trabalho está inserido dentro do Projeto Infância Segura, capitaneado pela Atricon e coordenado pelos Tribunais de Contas do Piauí e Rondônia. Foi uma fiscalização nacional, realizada por 20 TCs. Os procedimentos de fiscalização se basearam no exame da legislação pertinente, na análise das respostas obtidas por meio da aplicação de questionário aos dirigentes das unidades gestoras, em entrevistas realizadas com atores do SGDCA, em documentos e informações requisitados e nas inspeções in loco realizadas. Com base nas informações coletadas, novas ações de fiscalização, como auditorias, podem ser realizadas. A modalidade levantamento não gera sanções ou determinações aos responsáveis.
A fiscalização abrangeu o Poder Executivo do Estado do ES; o Ministério Público do Estado do ES; a Defensoria Pública do Estado do ES e o Tribunal de Justiça do Estado do ES, no período de 2023 a 2024. A execução dos trabalhos ocorreu entre 18/09/2024 e 29/10/2024. Não fez parte do escopo do levantamento as políticas anteriores a 2023 e ações e políticas destinadas aos jovens acima de 18 anos.
O questionário eletrônico elaborado pela equipe nacional do levantamento e aplicado pelo TCE-ES foi composto por 85 questões, estruturado em quatro dimensões fundamentais, que abrangem diferentes aspectos da gestão e execução da política pública de proteção da criança e adolescente: governança da política pública; prevenção; repressão e acolhimento; e dados e estatísticas, que tratam dos sistemas e bancos de dados existentes para recepção, tratamento e análise dos dados.
Fragilidades
A partir dos dados levantados, foi possível realizar um diagnóstico sobre a estruturação sistêmica da rede de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes do Espírito Santo, mapeando as principais fragilidades, deficiências e riscos, no que se refere à governança, prevenção, acolhimento, enfrentamento, dados e estatísticas.
1- Governança
Falhas de integração e na governança do SGDCA
A governança é fundamental para garantir que a organização/sistema alcance seus objetivos de maneira eficiente, ética e responsável. Contudo, no decorrer do processo de fiscalização foram identificadas deficiências na governança da política de atendimento às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
O governo federal não estabeleceu um direcionamento claro e consistente para a implementação da política de atendimento às vítimas nos níveis estaduais. Essa falta de orientação se reflete na ausência de diretrizes unificadas e estratégias que possam guiar os estados na execução de ações de prevenção, proteção e atendimento às vítimas.
Ausência de Plano Estadual específico de prevenção e enfrentamento à violência em face das crianças e adolescentes
Constatou-se que o Estado do Espírito Santo não possui um plano estadual específico de prevenção e o enfrentamento à violência em face de crianças e adolescentes. Essa ausência indica uma lacuna significativa na estrutura de governança e demonstra a falta de um direcionamento estratégico para a prevenção e combate à violência infantil em âmbito estadual.
2- Prevenção
Ausência de matriz intersetorial de capacitação dos profissionais envolvidos
A capacitação dos profissionais que atuam na rede de atendimento do SGDCA é de fundamental importância para assegurar que o acolhimento das crianças e adolescentes seja feito de forma qualificada, humanizada e eficaz. Profissionais bem-preparados possuem o conhecimento técnico e as habilidades necessárias para identificar, prevenir e atuar em casos de violência, abuso, exploração ou qualquer situação que viole os direitos das crianças e adolescentes.
Inexistência de uma atuação articulada entre União, os Estados e os Municípios na elaboração de políticas públicas para coibir o uso de castigo físico
A proposta de coibir o uso de castigo físico e tratamentos cruéis ou degradantes, promovendo alternativas não violentas na educação de crianças e adolescentes, é fundamental para garantir o respeito à dignidade humana e o desenvolvimento saudável das novas gerações. Isso envolve a implementação de políticas públicas, capacitação de educadores e a conscientização da sociedade sobre a importância de métodos de disciplina que respeitem os direitos da criança e do adolescente, como o diálogo, a empatia e o reforço positivo. É crucial que essa mudança de paradigma seja apoiada por leis e práticas que protejam as crianças de abusos e incentivem um ambiente familiar e escolar saudável.
A falta de cooperação intergovernamental enfraquece o impacto de campanhas de conscientização e sensibilização da sociedade sobre formas alternativas de educação. Sem uma mensagem coesa e ampla, o alcance das informações é limitado, e práticas violentas podem continuar sendo culturalmente aceitas em diversas comunidades.
Inexistência de colaboração do Estado com os municípios para a elaboração de um protocolo que estabeleça medidas de proteção à criança e ao adolescente contra qualquer forma de violência no âmbito escolar
A elaboração de um protocolo com medidas de proteção contra todas as formas de violência no ambiente escolar é fundamental para garantir um espaço seguro e acolhedor. Esse documento deve contemplar diretrizes essenciais para assegurar sua efetividade e funcionamento adequado. Isso engloba definição de violência, esclarecendo o que se entende por práticas violentas, como bullying, abuso físico, sexual, emocional e psicológico; prevenção também deve ser prioridade, por meio de programas de conscientização e educação; além da formação dos educadores, capacitando professores e funcionários para reconhecer sinais de violência, adotar intervenções adequadas e utilizar práticas de disciplina não violenta.
Outro ponto importante é a criação de um canal de denúncias seguro e anônimo, permitindo que alunos e pais relatem casos de violência com a garantia de confidencialidade e de que as denúncias serão tratadas com seriedade.
Neste ponto, cabe citar que no Estado, em 2023, foi desenvolvido e implementado o Plano Estadual de Segurança Escolar, fruto de uma parceria entre a Sedu e a Sesp. Apesar da relevância, inovação e boa intenção do Plano, nota-se que suas ações estão focadas principalmente na prevenção de massacres e ataques em escolas, não contemplando plenamente todas as formas de violência.
3- Enfrentamento e acolhimento
Insuficiência na identificação das fontes de financiamento das ações de prevenção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes no orçamento estadual
Há uma significativa deficiência na alocação e execução de recursos públicos específicos para a prevenção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes no Estado do Espírito Santo. A insuficiência de dotação orçamentária específica direcionada para essa finalidade resulta em uma fragilidade na implementação de políticas públicas duradouras e eficazes e, especialmente, em uma dificuldade de mensuração dos resultados alcançados com essas políticas.
Somente 80% dos municípios capixabas possuem dotação orçamentária específica para Conselho Tutelar
Verificou-se que 15 municípios capixabas (19,2%) não possuem dotação orçamentária específica para os conselhos tutelares, o que representa um descumprimento direto da legislação vigente. Mesmo entre os 63 municípios que preveem dotação orçamentária para o Conselho Tutelar, apenas seis deles não efetivamente liquidaram recursos nessas dotações previstas.
Ausência de protocolo estabelecendo a máxima prioridade ao atendimento das crianças na faixa etária da primeira infância com suspeita ou confirmação de violência de qualquer natureza
Foi constatado que nenhum ente definiu formalmente um protocolo estabelecendo a máxima prioridade ao atendimento das crianças na faixa etária da primeira infância com suspeita ou confirmação de violência de qualquer natureza. A criação de um protocolo que priorize o atendimento a crianças na primeira infância em situações de violência é um passo fundamental para garantir não apenas a proteção imediata, mas também o desenvolvimento saudável e a promoção dos direitos da criança.
Ausência de procedimento operacional padrão – POP – no âmbito da polícia civil e militar, em crimes relacionados à violência contra crianças e adolescentes
Foi constatado que as Polícias Militar e Civil não possuem um POP, no âmbito da corporação, que estabeleça regras sobre o atendimento de ocorrências envolvendo crianças e adolescentes, contemplando as diversas situações em que são autores, vítimas ou testemunhas de violência. A implementação de um POP para o atendimento e registro de ocorrências relacionadas à violência contra crianças e adolescentes deve ser vista como uma prioridade no âmbito da segurança pública. Além de proteger as vítimas, ele fortalece a atuação das polícias civil e militar, promovendo eficiência, legalidade e respeito aos direitos humanos.
Na Capital do Estado é realizada a escuta especializada apenas na Polícia Civil
A fiscalização constatou que o atendimento específico para criança e adolescente é realizado apenas pela Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente da Polícia Civil do Espírito Santo. Também foi verificado que a Polícia Civil não realiza o depoimento especial. Sem essa prática, os depoimentos são tomados em ambientes inadequados e por profissionais não especializados.
Ausência de centro de atendimento integrado com atendimento integral e interinstitucional às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência
O Centro é fundamental para assegurar um atendimento humanizado, eficiente e coordenado às vítimas ou testemunhas de violência. A principal importância desse centro é oferecer um espaço seguro e acolhedor onde diferentes profissionais (como assistentes sociais, psicólogos, médicos e membros do sistema de justiça) atuam de forma integrada, evitando que a criança ou adolescente passe por múltiplos atendimentos e entrevistas, o que poderia causar revitimização e agravar seu trauma.
O Espaço Lilás, localizado no Instituto Médico Legal, funciona exclusivamente em horário comercial e possui uma entrada claramente identificada, o que pode comprometer a privacidade das vítimas
Fora do horário de funcionamento do Espaço Lilás, crianças e adolescentes que necessitam de atendimento são direcionadas para médicos legistas de plantão, que, em muitos casos, não possuem capacitação específica para lidar com vítimas de violência sexual. Além disso, verificou-se que a entrada do Espaço Lilás está visivelmente identificada com logotipo próprio, o que contraria as boas práticas de acolhimento e proteção.
4- Dados e estatísticas
Ausência de integração entre os dados e sistemas dos entes do SGDCA
A falta de integração entre os dados e sistemas dos entes que compõem o SGDCA no Estado do Espírito Santo representa um obstáculo significativo para o atendimento eficiente e a formulação e execução das políticas voltadas para a temática.
Neste ponto, a equipe de fiscalização identificou como boa prática no estado a Lei 11.147 de 2020, que define a obrigatoriedade de Notificação Compulsória dos eventos de violência de interesse do Sistema Único de Saúde à autoridade sanitária estadual, por todos os profissionais dos serviços de saúde, instituição de ensino e assistência social, de caráter público, privado ou filantrópico, e Conselhos Tutelares em todo o território do Estado do Espírito Santo. A partir desta lei, o sistema e-SUS-VS, da Secretaria Estadual de Saúde, se torna a porta de entrada para notificação de violências ocorridas na saúde, educação, assistência social e Conselhos Tutelares. A notificação é obrigatória para todas as faixas etárias e não somente para crianças e adolescentes.
Ausência de uma ouvidoria integrada à rede de proteção no âmbito do Estado e dos municípios
A ouvidoria, por definição, deve atuar como um canal direto e acessível para que a população possa denunciar, relatar irregularidades e solicitar informações sobre violações de direitos, proporcionando um meio seguro para que vítimas, familiares e testemunhas busquem ajuda e orientações. Porém, não existe uma ouvidoria integrada à rede de proteção no âmbito do Espírito Santo e dos seus municípios.
Ausência de interoperabilidade entre os sistemas dos entes que compõem o SGDCA
Verificou-se a ausência de interoperabilidade entre os sistemas dos entes do SGDCA no Estado do Espírito Santo, o que significa que cada órgão trabalha com um sistema independente, sem troca de dados ou informações com os outros entes. Essa falta de integração prejudica a articulação e o acompanhamento dos casos de violação de direitos, dificultando a tomada de decisões e a implementação de ações coordenadas e efetivas.
O sistema SIPIA-CT não está em funcionamento nos Conselhos Tutelares do Estado
Segundo informações do Governo Federal, o Sipia é um sistema nacional de registro e tratamento de informações sobre a garantia e defesa dos direitos fundamentais preconizados no ECA. Deveria ser alimentado pelos Conselhos Tutelares para qualificar os procedimentos de escuta, orientação, encaminhamento e acompanhamento de casos, ainda não se encontra em funcionamento nos municípios do Espírito Santo.
Ausência de sistemas e base de dados uniformes nas unidades de perícia médico-legal da Polícia Científica do Estado
A análise das informações disponibilizadas pelas unidades evidenciou a ausência de um sistema único e integrado para o registro e acompanhamento dos atendimentos de perícia médico-legal no estado, seja para o público infantojuvenil ou para a população em geral. Atualmente, cada unidade opera de forma isolada, utilizando diferentes métodos e sistemas para armazenamento de dados, o que resulta em uma base de dados fragmentada e inconsistente.
Informações à imprensa:
Secretaria de Comunicação do TCE-ES
secom@tcees.tc.br
(27) 98159-1866